Eu calço é 37... meu pai me dá 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto o meu pé outra vez...
Eu aperto o meu pé outra vez
-Pai, eu já estou crescidinho
Pague prá ver que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto...
E andar do jeito que eu gosto!
Por que cargas d'água você acha que
Tem o direito
De afogar tudo aquilo que eu
Sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito
Que quer, na realidade
O dia em que você souber
Respeitar a minha vontade...
meu Pai, meu Pai
Pai já to indo embora
Quero partir sem brigar
Vou escolher meu sapato
Que não vai mais me apertar...
Meu pai era um querido. Totalmente diferente da letra desta música (que eu gosto muito e faz parte do meu repertório de rockeira), ele acreditava em mim... sempre me respeitou e me apoiou desde pequena, ele era meu amigo, meu maior amigo porque eu sabia que com ele eu poderia contar até o fim da estrada como contei, aliás. Minha mãe já era súper preocupada, ela achava que eu tinha algum problema, achava que eu era diferente das outras crianças... e ela tinha toda a razão, como excelente mãe que foi... ajudou meu pai a criar a filha dele que nasceu prematura e desenganada, ela era realmente boa. Aliás, eles nasceram com o dom de educar pessoas...
Eu gostava de carrinhos e abominava bonecas... em uma época súper preconceituosa, eu brincava com meninos de futebol, carrinho de rolemã, bicicleta, pipa, eu era completamente sem noção do perigo, totalmente avessa a regras, do contra mesmo, me arrebentava, me esfolava, um verdadeiro moleque. Minha mãe até desistiu de deixar meu cabelo crescer e cortava curtíssimo... ela ficava desesperada e meu pai simplesmente dizia "deixa a menina"... ele comprava carrinhos de plástico na feira prá mim e eu ficava felicíssima!!! Ele sempre me deu a maior força.
Meu pai, meu querido pai. Corinthiano roxo, filho de italiano, criado no Bairro de Bela Vista, adorava a Vai-Vai. Sua profissão era de Alfaiate, um grande alfaiate que amava os ternos e jaquetões que fazia com muito capricho. Cresci dentro da Oficina dele, pois depois de um tempo em sociedade com outros alfaiates, não deu certo e ele resolveu trabalhar em casa. A Alfaiataria dele era o meu quintal. Cresci brincando na máquina de costura enquanto ele estava na mesa. Ele tinha um ferro de passar a carvão que herdou de um patrão e que ele adaptou para ser elétrico. O ferro era pesadíssimo e ficava em cima de um tijolo de cerâmica vermelho e eu brincava ali. Brincava com os cavaletes dele, grandes, médios e pequenos que ele mesmo fabricava porque tinha que ser sob medida, ele fazia em madeira e depois encapava com algodão e pano para colocar os ternos e até passá-los nas partes mais difíceis. Linhas e agulhas mil. Até hoje eu tenho as linhas, dedais, agulhas... nunca precisei comprar uma linha para arrumar qualquer peça de roupa... sempre tem ali a cor que eu preciso. As tesouras então... muito grandes para minhas mãos, mas cresci recortando papel nelas e nunca me cortei. Minha mãe falava para eu não recortar papel nelas porque estragava o corte delas, mas meu pai nunca falava nada... ele deixava e eu ficava recortando. Eu mexia em tudo, ficava um tempão com ele... só saia de lá para fazer a lição de casa. Meu pai fez um balanço no corredor do quintal dos fundos, entre a escada que subia para a laje e a janela da Oficina dele que a gente chamava de "quartinho" e eu ficava ali, balançando, cantando...
Meu pai tinha um rádio amarelo (um dos primeiros rádios fabricados, herança de alguém), cresci ouvindo seus hits... Orlando Silva, que ele amava, tangos, boleros, óperas... até música classica, tudo o que tocasse na Jovem Pan AM. Depois das dez horas da noite começava um programa chamado "É Noite, Tudo Se Sabe" e eu ficava ali, não dava trégua... Minha mãe também cantava, adorava Elizete Cardoso.
A confiança era tanta que eu podia até faltar na escola, ele me perguntava e eu falava que não tinha nenhuma aula importante... ele não cobrava, não questionava. A confiança dele em mim era tão grande que eu tinha medo de decepcioná-lo... se eu tivesse oportunidade de cometer algo louco, pensava sempre nele, no olhar dele, na perplexidade dele e não fazia nada, só imaginar bastava para me deter porque tudo de mais sagrado na minha vida era a confiança e o amor que ele tinha por mim. Uma vez comecei a usar um chapeu de feltro preto e isto gerou falatório na vizinhança e falaram algo de mim para ele que não foi bom, Pois ele veio conversar comigo, me perguntou se aquilo era verdade... e o que eu respondesse não era nunca mais questionado. Ele acreditava. Nunca duvidou de mim. A nossa amizade também era muito grande, tínhamos uma ligação mesmo, uma conexão... que as pessoas conseguiam enxergar. Era notória a nossa empatia.
E, quando comecei a gostar de Rock Pauleira, nunca ouvi meu pai falar para que eu abaixasse o volume... ele sempre me respeitou como pessoa. Fazia ele ouvir Janis Joplin, Deep Purple, AC/DC, Rush, Kiss, Pink Floyd e Led Zeppelin para ele ter uma opinião sobre Rock... heheh, e ele ouvia!! Meu pai era demais!!!
Acima de tudo, meus pais eram pessoas boas... principalmente meu pai. Ele vivia a vida dele, só opinava quando alguém solicitava a opinião dele. Cuidava de sua vida, não tinha tempo para a vida dos outros... paciente, amoroso, bom marido, companheiro, bom pai. Ele podia cobrar exemplo porque era exemplar.
A morte é definitiva. A única situação definitiva da vida. Antagônica, uma não vive sem a outra. Fatal. Certa. Amedrontadora...
Meu pai morreu quando eu tinha 21 anos. Perdi meu chão, mas voltei prá casa. Dormi sozinha na casa que era dele, pois minha mãe morreu três anos antes... ninguém me esperava ali. Solidão. Morei sozinha sem ter que sair de casa. Ele morreu em 1989 e até hoje eu sinto saudade dele. O tempo não alivia todas as coisas. Não alivia.
Apesar do pouco tempo que convivemos, para minha vida foi gratificante ser filha deles. Esta foi certamente a primeira grande sorte que tive na vida, pois além de ter tido a oportunidade de conviver com seres humanos dignos, a Educação que eles me deram foi e ainda é a grande capacitação que tive em minha vida.